quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A ladeira que levava ao céu


Quando era criança, levávamos aquela vida de ciganos, ora aqui, ora ali, era impressionante nossa capacidade de não morarmos nem um mes em um lugar.
Certa vez, fomos morar na casa de minha avó, a casa, um sobrado, era bem localizada, ficava na avenida principal, em uma esquina no bairro em que já tinhados morado em todos os cantos, passei a me sentir muito importante por morar ali, com minha avó, minha tia e dois tios e naquela casa grande e bonita.
Em uma das raras vezes, quando parava na janela, minha mãe encostava ao lado e certo dia, ela apontou para uma rua, uma pequena ladeira, que também fazia uma pequena curva e terminava atrás de umas árvores, dando a impressão para nós que olhávamos de nossa janela, que essa pequena ladeira não terminaria nunca.
- Tá vendo ali filho, essa ladeira é a ladeira que leva para o céu - disse minha mãe, em um raro momento de mansidão.
Passei a sempre que podia, parar sobre a janela, debruçar meus ombros e ficar ali por horas e horas observando quem ia para o céu, e todas as pessoas que desciam aquela pequena ladeira, eu torcia por elas, para elas chegarem "bem" ao céu: a moça que descia calmamente, a mãe que descia apressada arrastando o filho pelas mãos, o senhor que parecia voltar do trabalho e ir diretamente para o céu ("que maravilhoso isso, ir para o céu e nem parar em casa") ...
Certa vez, achei magnífico, estava descendo uma banda, uma fanfarra, diretamenta para o céu, aquilo era sublime, fiquei radiante e pensei comigo mesmo:
- Puxa, o que uma banda deve ter feito, para eles todos merecerem ir para os céus e juntos ainda?
Como éramos nômades, e minha avó em sua maestria de matrona da discórdia, semeando as intriguinhas entre os irmãos, certo dia, em mais uma das brigas familiares, minha mãe arrumou as malas e partimos.
Senti, por sair da casa de minha avó, senti por perder o privilégio de ter uma das únicas janelas do bairro que tinha a vista da ladeira que ía para o céu, senti por perder a "capelinha" (uma pequena capela, que ficava na esquina ao lado da casa de minha avó, e era as vezes meu ambiente de refúgio, olhando imagens, vendo as velas, vendo as pessoas totalmente entregues a sua fé e seus pedidos de clemência e ajuda).
Passaram-se anos, e eu sempre me perguntava, como podíamos ser tão exclusivos, e termos esse privilégio de termos a bela visão da laderia que levava ao céu? Certo dia, descobrí que aquilo não era verdade, olhei para aquilo até com certa normalidade, tinha aprendido a ter esse olho, de enfrentar os momentos difíceis com o olho da normalidade, e aquele era um momento mais que dificil.
Passaram-se mais alguns anos, e certo dia, em um pequeno momento, conversando com minha mãe, perguntei:
- Mãe, lembra da "ladeira que levava ao céu"?
Ela começou a sorrir e comentou:
- E não é verdade filho, aquela rua não parecia que levava ao céu?
A minha decepção, com toda essa história, aplacou-se um pouco, pois percebí que ela em seus limites, em sua história de vida, fazia de tudo para acreditar que aquela rua, era aquilo mesmo, uma ladeira, uma pequena ruazinha que nos levava para esse lugar, um lugar bem melhor para se viver.
Ha pouco tempo atrás, conversando com uma amiga, que é mãe, ela comentou:
- Há "mentirinhas" tão boas na infancia, elas são lúdicas, elas nos dão referencias, diretrizes, para nosso caminho do amadurecimento.
Lembrei então, da história da "ladeira que levava ao céu", e lembrei tantas outras "mentirinhas" que ouví na infancia e da decepção posteriora, ao ver que aquelas verdades, eram tolas mentiras. Pensei também que não senti nenhum "aspecto lúdico" nessa história e tantas outras histórias que eram apenas isso, "mentirinhas".
Pensei então, em minha particular experiência, que crianças tem que ouvir histórias sabendo quando são mentiras e sabendo quando são verdades, para no futuro conseguir trafegar com mais segurança na relatividade desses dois pólos. Pensei que durante anos, carreguei algumas mentiras e nunca gostei disso, mas, por outro lado tenho boas lembranças dessas histórias pois sei que quando minha mãe as contava para mim, estava contando para ela também, tentando acreditar naquilo. Então, eu olhava para todas as histórias que ouvi em minha infância e me perguntava sobre o que seria mentira, sobre o que seria verdade.
Atualmente, acho que já fiz uma releitura de todas, e me localizei melhor e quando olho para os meus filhos, penso que, eu em minha vida quero fazer o inverso, não quero mostrar a realidade nua e crua, quero apenas que eles me tenham na memória como o homem que era sincero, e quando ia enveredar por alguma fábula, por algum "evento lúdico", apenas avisava antes, dizendo "agora é tudo brincadeira, então vamos brincar um pouco"...

Um comentário:

prassempre disse...

A filha de uma amiga acreditou por um bom tempo que a mãe era uma fada.
Já na minha criação não houve espaço para mentiras - lúdicas ou não. Pela psicologia do curso Normal, minha mãe achava que eu me sentiria traída quando descobrisse, por exemplo, que não existia Papai Noel. Então ele nunca existiu mesmo.
Prazer em conhecer, Alta.
bjs,
Crisssssssssssssssssssss